Nota introdutória. Escrevi isto depois de evento/manifesto na Redenção envolvendo "os pelados" que têm sido "vistos" em Porto Alegre. Coloco aqui, porque escrevi num fôlego só, sem revisão que farei oportunamente.
Há mais temas correlatos que o tema propicia, mas parto deste extenso texto que sei poucos terão a coragem de ler.
Mas a rede que nos une neste debate me leva a compartilhar estas minhas reflexões.
É preciso aprofundar os debates expostos abaixo.
Os pelad@s de Porto Alegre, a indecência do "judiciário" e a mídia previsível( título provisório)
Depois dos episódios de pessoas nuas circulando pela cidade de Porto Alegre e o que pude vivenciar e observar resolvi tecer alguns comentários.
Em primeiro lugar queria dizer que falo informalmente enquanto militante acostumada a me manifestar pelas causas que defendo. Falo também enquanto socióloga e psicóloga e como expectadora-partícipe desta rede que nos entrelaça.
Outra questão que chamou muita atenção nos últimos dias foi o auxílio-moradia dos juízes, que por si só daria pano para manga, porque ele não só ratifica a distribuição desigual de valores (uns valem mais do que outros) e direitos como mostra como vemos ou concebemos a ideia de democracia. Democracia não é somente a liberdade de expressar seu pensamento ou agir, até porque o Brasil nem tem este modelo liberal de liberdade e o Estado, em várias normas, faz uma mediação entre estas liberdades e direitos, de forma a coibir algumas expressões desiguais desta liberdade para com certos grupos que não estejam no mesmo patamar de usufruírem estes direitos. Assim o Estado em medidas jurídicas intervêm diante da desigualdade física, econômica e mesmo psicológica com medidas e preceitos jurídicos. Exemplo disto é a Lei das Cotas, a Maria da Penha, e o próprio Código do Consumidor que fez com que o Brasil inaugurasse mundialmente um novo conceito no direito. A democracia se fez não só pela liberdade, mas pela divisão de poderes coibindo que um poder se sobrepusesse sobe os demais, como era o caso do rei nos sistemas autoritários, mas esta medida ameaça a democracia ao desequilibrar também este controle de um poder sobre os demais. Este tema voltará a se relacionar ao final da explanação com as manifestações de pessoas peladas em Porto Alegre.
Nas últimas semanas o Brasil ficou polarizado e obcecado pela disputa política que por si só traz e trouxe muitas outras questões e eis que no meio disso aparecem mulheres flagradas nuas correndo em Porto Alegre. Até ai nada excepcional se não vivêssemos numa sociedade em rede com todos os cidadãos munidos de celulares que podem fotografar e postar em tempo real tudo que acontece, como se fossem estas cenas mais inusitadas, uma moeda, um valor de importância, para aquele que é capaz de ser o primeiro a captar a novidade.
Na “rede” estas cenas levaram a um debate recheado de lugares comuns e palavras sem reflexão foram ditas e repetidas, muitas destas frases pareciam ter saído de um romance de Jane Austen, que retratava a hipocrisia e os valores de uma sociedade moralista e materialista do século XVIII. Não vale a pena falar das pequenas brigas de espaço na rede, onde pessoas brigam pela primazia de criarem um evento, acusando-se em julgamentos morais das intenções dos demais, muitas vezes no tom pueril (eufemismo) semelhante ao debate polarizado do final das eleições presidenciais. O único consolo era que estas “peladas” mudavam o foco da atenção num momento em que se falava em até intervenção militar, fato este que não gostaria de alimentar e desenvolver aqui ou dar espaço para algo que deveria ter ficado em 1964.
O fato é que estas pessoas peladas em Porto Alegre suscitam alguns pontos de reflexão, mas antes uma nota. Na rede, usou-se mais a palavra “pelado” do que nu, que inclusive daria mais espaço para twittar, porque pelado é mais irreverente, se não desrespeitoso, para com os que se despem. Há quase um tom de deboche na palavra pelado. Não se fala em campo de pelados, mas se usa a terminologia mais “elegante”: nu!
Alguns pontos que estes “pelados” me levaram a refletir (não esgotando os pontos e não atribuindo a nenhum um valor maior, se não de espaço mnêmico que minha memória permite associar ou desencadear).
1- A questão do nu, da noção de decência, em pleno século XXI;
2- A ideia ou conceitos de saúde mental e a forma como os profissionais “da saúde” trabalharam a questão na imprensa;
3- A mídia e a notícia como mercadoria, e a forma como acabam ocupando um lugar de grande responsabilidade razão pela qual muita gente tem demonstrado, se não raiva, pelo menos indignação, para como a forma como estes que não são peritos nos assuntos que apresentam, lidam, ao reproduzirem o próprio senso comum ao escreverem um texto.
Vou começar por este falar deste último item. Falo primeiramente sobre o tom e o rumo como a mídia retratou inicialmente o tema. Era previsível que eles estariam por lá e como sempre são os primeiros a chegarem e os primeiros a saírem e retratam só os primeiros fatos e não o esquentar dos manifestos, porque assim que têm matéria para mandar ou para irem embora, eles se vão. E quando chegam a maioria dos manifestantes, a imprensa já ausente, vemos manchetes previsíveis: 300 pessoas estiveram presentes, porque eles vão embora muito antes de os demais 3000 participantes cheguem!
Hoje aconteceu semelhante. Eles eram em maioria, porque o tema de pessoas peladas pelas ruas da cidade interessou mais à mídia, do que o auxílio-moradia dos juízes e tantas outras situações com mais quórum de manifestantes que não levantaram ao mesmo interesse. Quando começamos a chegar a mídia pontualíssima já se fazia presente em grande número para cobrir a matéria sobre os pelados. Alguns cordiais e interessados e muitos impacientes e eu diria mesmo intimidatórios, e ali ocuparam o lugar daquele juiz que se achou acima da lei e desequilibrou mais ainda a balança de igualdade de direitos que não são aplicados equanimemente no Brasil. “Se ninguém tirar a roupa nós vamos embora” disse mais ou menos um destes personagens da mídia que me lembra em muito a fala dominadora dos machistas, dos juízes, dos políticos, daqueles que historicamente neste país ocupam o lugar da “autoridade” e dizem: ‘VOCÊS SABEM COM QUEM ESTÃO FALANDO?”. Aliás, isto me lembra de episódio recentemente julgado que envolveu justamente um personagem da grande mídia brasileira que “migrou” deste lugar de poder, da grande mídia, para o lugar de poder (autoridade) do poder legislativo numa fala totalmente explícita destas palavras. Coube a ele o pagamento de uma multa reforçando mais ainda a nossa longa historia de estupro do Estado Democrático de Direito, orquestrado pelo poder judiciário. (Há muitos juízes e demais membros do judiciário dignos da palavra imparcialidade e decência, mas meu tom acusatório é para este “Poder”, no jogo da falácia da democracia brasileira.)
Este manifesto/evento se criou a partir de um “debate” aleatório na rede e não era uma causa essencial de nenhum dos participantes e justamente o contrário. Ali quem precisava do furo eram eles, a mídia, e não nós. Invertemos a lógica, permitindo-nos o direito de esperar que fossem embora para que aquilo que “tínhamos para vender”, o furo jornalista, pudesse acontecer. E decidimos boicotá-los diante desta posição de “abuso de poder” em que se colocaram. ASSIM QUE SAIU A MIDIA IMPACIENTE FOMOS PARA A REDENÇÃO E ALGUNS MANIFESTANTES ACABARAM TIRANDO A ROUPA, DESTA VEZ HOMENS, APLAUDIDOS PELOS PRESENTES NO LOCAL. O furo ficou para poucos jornalistas e para os não-jornalistas acostumados a transformar estas cenas em imagens e "história".
O tema nos leva à discussão sobre o papel da mídia, neste mundo em rede, porque o furo não é mais deles, mas do personagem fortuito com um celular a mão e o poder está nas palavras “bem ditas” que conseguem se espalhar e empodeirar, mais do que estes que ainda tentam assumir este lugar de “noticiar” e no caso da midia de grande poder!
E o lugar da “autoridade” se esvazia, porque muitos conseguem transformar o complexo ou relevante em vulgar ou lugar comum numa espécie de tradição jornalística.
E aí no momento em que alguns atores sociais aproveitam para despir preconceitos ao desnudarem-se trazendo para discussão o porquê atribuímos a certas partes do corpo a ideia de decência sem questionar que é justamente neste tabu que se construiu a pornografia, porque qualquer parte proibida em exposição provoca um falso erotismo, alguns elementos da mídia impedem que a discussão se aprofunde. Eles mesmos compartilhando estes valores dominantes de “moral” e “decência”, reproduzem, mesmo falando com peritos e “autoridades” legitimas ou legitimadas estas ideias arcaicas que reforçam certas noções moralistas sobre o corpo nu. É justamente este discurso que enriquece a uma categoria de exploradores de mulheres e crianças, favorecendo o estupro, a agressão e o assédio sexual e a própria pedofilia. Isto alimenta a objetificação das mulheres, e todo um mercado da pornografia e supervalorização do corpo em detrimento de outras características. Isto sustenta esta opressão em homens e mulheres que precisam buscar a eterna juventude, a eterna beleza, a eterna potência sexual em detrimento da liberdade, da espontaneidade e do direito de sermos singulares e diferentes destes personagens que nossas roupas representam. Estamos todos fantasiados, mas ninguém percebe, como naquele conto do rei que está nu e não se apercebe. O homem de terno e gravata está tão fantasiado quanto um palhaço no picadeiro, porque ele vive através da aparência física um lugar de distinção, um lugar de poder na sociedade. Sua roupa grita o tempo todo, como o juiz infrator que se sentiu ofendido ao ser abordado pelo agente da lei ao ser flagrado em sua ilicitude: “tu sabes com que tu estás falando”? Ou ainda: “mas eu sou uma pessoa importante, tenho valor material, sou de uma elite, e tu tens que me respeitar, porque eu valho mais do que os que não estão nesta elite ou nesta classe social (tenho mais valor do que os pelados simbólicos, os pelados que estão a margem sem dinheiro). Isto ocorre igualmente com a mulher que precisa investir em beleza, em ser esbelta para sentir ou expor-se bela, porque se vende que ela precisa ser “desejável”, ou somente porque mulheres belas tem um valor melhor do que as que são “consideradas” menos belas. As mais belas são inclusive coroadas e tudo isto é vestimenta. No caso destas mulheres valorizadas pela beleza do corpo, estar nu, quando ela é objetificada, é também uma vestimenta, porque esta nudez, não é estar sem roupa, mas é um signo de valor no espaço social, um lugar muito perverso que ainda destinam às mulheres: mulher objeto onde a nudez é bem paga e as partes expostas alimentam esta pornografia que é justamente a perda da liberdade de estar nu como qualquer animal, expressão desvirtuada desde as primeiras interpretações das escrituras judaico-cristãs que deslocaram a noção da perda da inocência para as “zonas” de nossa animalidade, deslocando justamente esta capacidade que temos de com nossas palavras e conceitos violar, com nossa moral, a “pureza” há muito perdida!
Os pelados de Porto Alegre me inspiraram outras questões, que vão além do que eu sei que conseguem hoje se interessar em ler a sociedade da notícia instantânea, de 140 caracteres, e se possível com imagem e vídeo. Apenas não resisto de falar do papel dos peritos ou os médicos a quem delegamos ao legitimidade de falar sobre os espaços/lugares dos “desvios” que até bem pouco os homossexuais recebiam nos códigos de doenças. Cabe falar sobre o significado e do valor que damos a certa partes do corpo, e o tabu ainda sustentado sobre a sexualidade e mesmo e sobre a genitália que é tão forte que acaba sinônimo de sexo, quando sexo não é uma parte do corpo, mas um ato animal, que praticam também os humanos. Assim a genitália que não é diferente do pé, da cabeça e dos olhos, mas que não foi tema de debate.
Gostaria de concluir sobre a relação que tenho feito com nossa vigente noção de obscenidade e os cartazes que tenho empunhado ao falar da indecência dos juízes com seu auxílio-moradia. Num país com tanta desigualdade de direitos inviabilizando a expressão dos princípios essenciais de dignidade e solidariedade da Constituição me resta apenas o espaço da metáfora da indecência do poder judiciário. Este gesto, nada solidário dos juízes em terra de tantos sem direitos fundamentais, é mais imoral ou indecente do que um milhão de pelados em gesto obsceno. O destaque da mídia aos pelados em detrimentos de tantos outros temas de relevância política social de alguma forma alimenta esta lógica moralista e materialista que supervaloriza o corpo, e não a ética e a “justiça” ("decência" jurídico-política) e mesmo a democracia violada nestes benefícios. Isto é um atentado aos valores que motivaram os primeiros revolucionários que construíram a história da democracia ocidental e a busca da liberdade como um direito a ser conquistado.
Porto Alegre, 16/11/14 - Eliane Carmanim Lima
Veja o vídeo : http://www.facebook.com/video.php?v=10152880638859759