“Nada
pode parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.” BERTOLD BRECHT
O texto a seguir é
uma contestação aos argumentos que justificam a criação de um projeto de lei
estadual, PL 312/2012 no RS que pretende regular e
“legitimar” o uso dos cavalos pelos gaúchos e a prática da Cavalgada do Mar.
Proposta do PL
312/2012
Reconhece o direito de andar a cavalo, tomado
individualmente ou em grupo, em qualquer atividade ou evento equestre, como bem
de natureza imaterial que integra o patrimônio cultural rio-grandense e
estabelece as diretrizes e bases de bem-estar animal para as atividades e
eventos equestres e de apoio à equinocultura, e dá outras providências.
Sobre o PL 312/2012, a tradição gaúcha, o veganismo
e os cavalos.
Prezados deputados do RS,
Alguns parlamentares propõem um projeto de lei que trata de “regularizar”
ou legitimar o uso de cavalos, ou garantir a montaria, fato este que não é
proibido no Brasil. Neste texto apontamos algumas ideias que partem de um
enfoque psico-sociológico para apreciação da casa legislativa deste estado. Os argumentos aqui apresentados não abordam
apenas os aspectos jurídicos do projeto, mas são elaborados a partir de
conhecimentos do campo da psicologia e da sociologia, melhor habilitados para
falar sobre “tradição” de um povo.
Este
projeto de lei aborda a teoria de UM psicanalista, Carl Gustav Jung, sugerindo
que alguns arquétipos atribuídos à tradição gaúcha seriam compartilhados por
todos os gaúchos. Primeiramente é
importante dizer que a abordagem deste psicanalista é apenas uma dentre as
várias teorias da psicologia e deve se dizer que as justificativas apresentadas
não partem de pesquisas de forma a comprovar que estes arquétipos sejam vivenciados
de forma generalizada por um número significativo de gaúchos.
Não nos
parece que estes argumentos partam de algum estudo sociológico ou antropológico
aprofundado sobre o gaúcho, ou sobre a população do RS, e tampouco fazem jus
àquela maioria que protesta contra os usos dos cavalos e é daqui que partem
nossos argumentos.
Primeiramente
é preciso abordar um dos pontos da justificativa do PL 312/2012 que trata da
questão cultural sobre a tradição gaúcha. Não há dados comprobatórios de que a
ideia “consagrada” ou estereotipada do gaúcho seja compartilhada por todos os
nativos do RS. O texto de justificativa parte de uma abordagem jurídica sem
apresentar bases científicas e muito menos sociológicas para sustentar as
considerações tecidas sobre a “tradição gaúcha” e o hábito de cavalgar. Para
debatermos sobre hábitos culturais seria necessário apresentar argumentos
embasados nas das ciências sociais além de dados comprobatórios destes
argumentos.
Na justificativa do projeto menciona-se uma audiência pública
de onde de cita o seguinte:
“As
entidades e autoridades da” sociedade civil, ligadas ao universo do cavalo
e ao tradicionalismo gaúcho, ouvidas na Audiência Pública opinaram pela criação
de uma Lei para reconhecer e assegurar o direito de andar a cavalo e da necessidade
de regulação estatal das atividades e eventos eqüestres, assim como a
construção de uma política pública de apoio à cadeia produtiva da equinocultura
para geração de emprego e renda. (...)
Esses grupos motivados por filosofias ecocentristras do tipo veganismo, defendem
ser imoral e antinatural qualquer utilização de animais por humanos. (...) E como
todos os grupos ativistas, essas ONGs fazem pressão junto às autoridades,
especialmente, o Ministério Público, a
fim de proibirem esses eventos no Rio Grande do Sul e acabam ocupando espaço
na mídia.
Estes trechos estão destacados acima primeiramente porque o
público vegano mencionado no texto, além de não ser o maior interessado, como
será desenvolvido a seguir, não só não teve a devida publicidade como não
costumam ocupar na mídia este lugar de destaque como será explanado.
A seguir vamos contextualizar as ideias apresentadas no PL
312/2012 quanto à generalização de que todos os gaúchos compartilham os
hábitos enaltecidos pela tradição gaúcha. Isto é um mito. Mesmo que não
estivéssemos vivendo uma grande revolução cultural, a ideia de que todos os
gaúchos são iguais e como tal propensos a valorizar as “tradições gaúchas” que
dão conta de churrascos, do uso de cavalos como montaria, e mesmo do inócuo
gosto pelo chimarrão, não passam de mito, consagrado como uma verdade única e
absoluta e estendida a todos os nativos. O
Rio Grande do Sul é um estado que comporta várias etnias, várias descendências
e várias tradições culturais, mesmo que a ideia consagrada e universalizada
seja a do “gaúcho”, pelo menos este gaúcho representado com roupas
características, ou com a ideia de serem apreciadores de churrascos e montaria.
Mas há outro elemento cultural que deve ser observado que é a grande mudança
cultural que estamos vivendo de onde o veganismo é uma das consequências.
Os humanos constroem sua distinção em relação aos demais
animais pela peculiaridade em que transmitem seus saberes e técnicas para as
futuras gerações. Neste processo engendra-se a cultura que condiciona a todos coagindo-os socialmente a agirem conforme o grupo social em que estão inseridos. A
forma como nos relacionamos com os (demais) animais fazem parte destas regras
sociais inconscientemente assimiladas e perpetuadas. O que se deve enfatizar é
que todas as condutas humanas são da ordem do social, porque mesmo as práticas
relacionadas à subsistência, como a alimentação e a reprodução, na espécie
humana assumem características que expressam mais do que a sobrevivência
biológica individual ou da espécie. Isto quer dizer que os humanos quando se
alimentam, fazem-no também para atenderem a uma demanda cultural, mais do que a
uma demanda biológica e mais ainda dizer dos demais hábitos que não representam
uma necessidade biológica. Assim, desde
os primeiros sociólogos, como Durkheim, se concluiu que opera sobre nós uma
força social coercitiva com o poder de orientar nossas ações de forma inconsciente. Quando
se fala “inconsciente” aqui, estamos trabalhando com categorias sociológicas,
para dar conta de um imperativo social e não apenas de estruturas psíquicas
individuais. Há, desta maneira, uma consciência coletiva compartilhada pelo
grupo social cuja reprodução é também garantida através de algumas instituições
sociais como a educação e o Estado. O próprio Direito reflete e é fruto desta moral
social. Através deste processo, as condutas censuradas pela sociedade acabam
sendo cristalizadas em regras jurídicas. O
sociólogo Pierre Bourdieu também reforça esta
ideia ao dizer que o processo de assimilação destas regras sociais não é fruto de
racionalização ou escolha consciente, mas fazem parte de um habitus, ou
seja, de um imperativo social que se expressa conforme o grupo social em que
vivemos. Isto não quer
dizer que não podemos conscientemente ou racionalmente refletir sobre nossos
condicionamentos, mas, via de regra, agimos inconscientemente a partir de
condicionamentos culturais, posto que estamos mergulhados no universo cultural
que nos ditará normas sociais a serem reproduzidas em detrimento de outras que
deverão ser recalcadas e censuradas.
Com isto queremos dizer que mesmo a ideia de que podemos
abater cruelmente os (demais) [1] animais
para nos alimentarmos ou mesmo para diversão fazia[2]
parte da cultura ou de normas sociais, que não é apenas gaúcha, mas ocidental,
que permitiu que esta ideia se naturalizasse
em nossa sociedade. No entanto, mesmo este condicionamento cultural
generalizado no ocidente, que permitia até o abate cruel, tem sofrido uma
grande mudança cultural que tem se refletido em várias condutas sociais e mesmo
no Direito. Outras práticas envolvendo os animais também têm se modificado e
cada vez mais leis coíbem maus tratos para com os animais. Estes hábitos aqui
são mencionados, porque o texto fala em veganismo.
É preciso lembrar que os paradigmas culturais é que engendram
as leis, e à medida que a sociedade se modifica as condutas não mais aceitas
socialmente acabam por se tornar ilícitas e mesmo criminalizadas à medida que
novos paradigmas culturais são construídos em substituição aos paradigmas
antigos. Entendendo por paradigma como “aquilo que os membros de uma comunidade
partilham” (Thomas Kuhn, Estrutura das revoluções científicas, 1978). No Direito podemos ver a cristalização destas
mudanças culturais, como é o caso da Lei Maria da Penha, mostrando que hoje
nossa sociedade não aceita mais a violência para com as mulheres, mesmo na sua
forma mais silenciosa, como na desvalorização e intimidação psicológica. Da
mesma forma nossa sociedade não aceita mais o preconceito étnico-racial, ou
relacionado à orientação sexual e a legislação acompanha estas mudanças culturais
proibindo estas condutas na forma de lei. Tanto mudamos que hoje as relações
homoafetivas são aceitas na norma jurídica e cogita-se apreciar estas mudanças
na Constituição Federal que ainda fala na união entre homem e mulher somente.
Se fôssemos aceitar o argumento da “tradição” como uma justificativa para as
nossas ações ainda hoje aceitaríamos o assassinato em nome da honra, as
agressões físicas de crianças como “medida educativa” e na área ambiental
aceitaríamos o cruel uso de esporas na montaria em rodeios, e tantas outras
condutas que hoje julgamos inaceitáveis e que possibilitaram a criação de leis
e medidas que proíbem maus tratos e mesmo a crueldade para com os animais.
Em relação aos (demais) animais são vários os exemplos que
mostram a mudança cultural já se materializando nas instituições do Estado.
Aqui no Rio Grande do Sul fomos o primeiro estado do Brasil a proibir os circos
com animais; também recentemente o extermínio de animais como política de
controle de população de animais ou mesmo de zoonoses passou a ser proibido e
aqui já se instalou uma secretaria de defesa de direitos animais. Também foi
aqui o primeiro caso em que o direito de objeção de consciência foi julgado
favorável a um aluno de biologia para eximir-se de participar de aulas em que
utilizassem animais, conforme as demandas de sua consciência moral. No Brasil
há hoje uma Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos Animais e em outros
países como a Bolívia e o Equador os
animais são sujeitos de direito dando conta de um uma demanda cultural que
pede que os animais não sejam mais alvo de crueldade. O mesmo ocorre na Espanha onde os primatas são considerados sujeitos de
direito. Na Suíça amplia-se a noção de dignidade e direitos para além dos
humanos e fala-se no direito das
“criaturas”. Na Alemanha este princípio de incluir os animais nos sujeitos
de direitos ganha a expressão de “dignidade
inclusiva” que mostra na própria expressão do termo um novo paradigma
cultural emergindo como foi em passado recente a noção de inclusão e de
respeito às diferenças. Também não podemos esquecer que a “tradição” milenar
das touradas tem perdido espaço e em várias cidades na Espanha as touradas
começam a ser proibidas, fato que há uma dezena de anos não seria imaginado.
Estes exemplos ilustram como as mudanças culturais têm influenciando tanto as
normas sociais como as normas jurídicas, modificando mesmo milenares tradições.
Os movimentos sociais que alimentam estas mudanças, por sua vez, não têm
fronteiras e contagiam mesmo os gaúchos que também têm protestado até contra o
uso, nem sempre “inofensivo”, dos (demais) animais, como o cavalo.
Há muitos
outros exemplos tanto na legislação brasileira quanto nas práticas sociais que
atestam esta grande mudança cultural, como a Farra do Boi que foi proibida[3], as
rinhas de galo igualmente proibidas no Brasil, assim como a caça, e em várias
cidades no Brasil os rodeios começam a ser proibidos e há mesmo um projeto de
lei federal que pretende acabar com os rodeios em todo o território nacional.
Mesmo no Novo Código Penal, em fase de elaboração, há projetos que pedem
mudanças na punição do crime de crueldade para com animais para que passe a ter
maior rigor punitivo e para que seja considerado de maior potencial ofensivo.
Isto significa que nossa sociedade está mais sensível aos maus tratos para com
animais. Em Porto Alegre também há uma lei que está sendo implementada proibindo
a circulação de carroças na cidade, fatos todos que corroboram com as mudanças
culturais, mesmo em tradições mais antigas como touradas e rodeios.
Estes exemplos atestam que estamos vivendo uma grande REVOLUÇÃO CULTURAL quando emerge a ideia
de que os animais merecem respeito e considerações morais. Esta mudança
é tão realidade que mesmo tradicionalistas conhecem hoje a expressão
“veganismo” que atesta por si só este novo paradigma cultural. Quando um novo
termo surge e se populariza é porque o conceito que ele carrega já se
materializou na sociedade, e assim hoje se fala em veganismo e especismo, como
no passado se falava em feminismo e machismo e respeito às diferenças,
introduzindo novas lutas sociais.
E como foi visto acima, mesmo no Rio Grande do Sul está
surgindo uma nova cultura que rejeita aquela que permitia a crueldade para com
os animais. Esta nova compreensão de mundo já apresenta vários exemplos vivenciados
nas práticas sociais no Brasil. Apoiar-se
no argumento da tradição é resistir a estas mudanças culturais que já se materializam
na legislação e na jurisprudência, além de ser uma ideia errônea do mito do
gaúcho generalizada a partir do senso comum.
Falando dos movimentos sociais e suas demandas aqui no Rio
Grande do Sul, é sabido que os ativistas de defesa de direitos animais, desde
os mais radicais que advogam o fim da exploração animal (veganos), até os que
são contrários a algumas práticas que permitem o sofrimento de alguns animais,
têm realizado protestos, manifestos e petições para defenderem os animais. Também não se pode negar que o número de
pessoas que se envolvem com estas práticas contrárias à crueldade e mesmo à
exploração de animais é crescente no Brasil e no mundo.
Ainda é importante
debater o que seria o tradicionalismo gaúcho em termos de proporção, porque apenas uma pequena proporção de gaúchos
participa e apoia as atividades relacionadas a esta tradição. No Rio Grande
do Sul, temos uma boa parte da população que cultiva tradições diferentes, como
os descendentes de italianos e alemães e para estes a ideia consagrada do
gaúcho ligado ao churrasco não os representa. Também há toda uma geração de
gaúchos mais urbanos que nunca tiveram o apelo da tradição gaúcha para lhes
orientar os hábitos e nestes há um número crescente de pessoas que repudia
todos os hábitos que permitem a crueldade e mesmo a exploração animal. Mesmo
a suposta tradição do churrasco como alimento preferido do gaúcho não se
sustenta, até porque cresce o número de pessoas vegetarianas e veganas mesmo
neste estado. Na capital do estado, por exemplo, existe hoje um grande número
de estabelecimentos vegetarianos e veganos, a maioria deles existentes há menos
de 15 anos, o que corrobora a ideia de que está se criando uma nova cultura que
rejeita a crueldade para com animais, mesmo dos animais abatidos para consumo. Estes
fatos derrubam a ideia de que os gaúchos comem mais carne do que os demais
brasileiros, a partir de um apelo cultural. Na realidade, Porto Alegre é uma
das cidades com maior número de restaurantes vegetarianos e veganos em proporção
à população. Uma recente pesquisa do Ibope aponta que havia em 2012 no Brasil
aproximadamente 15,5 milhões[4] de
vegetarianos[5], destes 84.780 eram de
Porto Alegre[6]. Este número tende a
crescer, pois dá conta desta variável cultural que está em curso, modificando
não somente a sociedade e a economia, mas também a legislação e criando novas
instituições e políticas públicas no Brasil e mesmo no Rio Grande do Sul. Tanto
se dissemina esta nova cultura que mesmo o último presidente do Supremo
Tribunal Federal, Ayres Britto[7]·, é
vegetariano em vias de se tornar vegano (se é que já não tenha adotado
definitivamente a filosofia e prática vegana).
No Brasil
não há ainda muitas pesquisas sobre o veganismo, e são incipientes as pesquisas
sobre o vegetarianismo, mas já se sabe que o veganismo tem chegado mesmo em
lugares mais fechados à cultura em rede, como na China. Na Alemanha, uma
pesquisa recente fala em um crescimento de 800% do veganismo, ou seja, é um
crescimento exponencial! (Ver links no final.)
Falando sobre a legislação brasileira, a própria Constituição
Brasileira inova ao proibir a crueldade para com os animais e mais tarde esta
conduta passa ser crime com a Lei de Crimes ambientais em 1998. Mas não podemos
negar que alguns animais são mais “invisíveis” perante a lei do que outros.
Assim como algumas minorias a quem os direitos sociais, e mesmo os direitos
fundamentais, duramente conquistados, tardam em poderem usufruir destes
direitos e medidas protetivas que sustentam sua igualdade de direitos, alguns animais
ainda são vítimas da crueldade e estão à margem da lei, apesar da Lei,
Constituição Federal, não distinguir os animais por espécies ou “usos”. Partindo
da sociologia e de pesquisas nesta área é preciso apontar que isto se dá pelo
longo condicionamento cultural a que estamos submetidos, mas mesmo assim a lei
já nos dá ferramentas para impedir que toda a crueldade seja proibida e
penalizada. Os animais que ainda padecem
da crueldade e que se encontram à margem da legislação que já teria elementos
suficientes para impedir que sejam vítimas da crueldade são os “animais de
consumo”. Poderíamos dizer que mesmo os cavalos, que muito se diz
serem respeitados pelos gaúchos, muitas vezes são vítimas de crueldade, de
excessos e de abusos, principalmente aqui no Rio Grande do Sul.
Voltando à questão cultural, vimos até aqui vários elementos
que mostram que mesmo que fosse verdade
a ideia de que existe uma tradição gaúcha uniforme e cultuada por todos os
nativos há muitas evidências de que há outra cultura está se cristalizando na
sociedade. Estes novos paradigmas culturais já estão materializados na
legislação que não permite a crueldade com os animais e coíbe cada vez mais
várias formas de sofrimento de animais. Outro princípio constitucional
valorizado na Constituição de 1988 é a ideia de solidariedade e cidadania que
destacamos aqui.
E ao falar em cidadania cabe abordar o veganismo, que
preferimos aqui chamar simplesmente da cultura que se modifica aceleradamente
no sentido de buscar mais respeito aos animais, com novos conceitos e valores
de respeito aos (demais) animais por
conta de seu valor inerente.
Criar normas jurídicas que ignoram a força destas mudanças não impedirá que
esta nova moral social se dissemine cada vez mais na sociedade. Cada vez mais
pessoas têm aderido a filosofias e principalmente a práticas que censuram o uso
indiscriminado dos animais. Mesmo que os parlamentares aleguem com argumentos
pontuais do ordenamento jurídico brasileiro, e aqui cabe dizer, reforçando
aquilo que o direito não permite, como o retrocesso jurídico, cada vez mais
pessoas estarão envolvidas com esta nova cultura que repudia a exploração dos
animais. Estes ativistas de todas as idades, de todas as profissões, e etnias,
que encontram expressão mesmo entre pessoas ilustres como o já mencionado ex-presidente
do Supremo tendem a aumentar em número aceleradamente.
Argumenta-se no PL 312/2012: A filosofia do “veganismo” é um corpo estranho na cultura do povo
gaúcho.
Dizer que o veganismo é um corpo estranho na cultura
gaúcha, além de não ter a menor sustentação sociológica ou científica é uma
negação da realidade inexorável desta mudança cultural que se dá na direção oposta
de lei que se pretende construir.
O veganismo, antes de ser uma filosofia é uma prática social e mesmo que
existam pessoas que se opõem a esta visão de mundo que emerge não conseguirão
mudar o sentido deste novo paradigma que se dissemina e alcança mesmo pessoas nos
pampas gaúchos. O significado do veganismo e a sua expansão acelerada devem ser
entendidos com uma grande revolução cultural, seja pelo que ela propõe, seja
pela forma como se alastra. Impor a
ideia do gaúcho dos pampas e seus hábitos de montaria a todos os nativos é
também uma grande violência simbólica , pois anula todas as demais etnias e tradições
que construíram o Rio Grande do Sul e que não se identificam com este mito.
É preciso reforçar que a ideia do gaúcho pampiano
e esta “paixão” pela montaria não representa muitos nativos e esta lei seria um desrespeito a todos estes que
se identificam com outras culturas que também desempenharam papel relevante na
história gaúcha, sem falar naqueles, em grande número, que entendem que os
animais não foram feitos para montaria e muito menos para “diversão” ou esporte!
É
muito importante destacar que não somente os veganos criticam os usos dos
cavalos, como ocorre na Cavalgada do Mar. Na
realidade o grande contingente de pessoas, a maioria no Brasil, que defendem
estes animais não seguem a filosofia e prática vegana. Estes protetores têm
sido presença maciça em manifestos contra a crueldade animal e foram estas
pessoas que protestaram quando cavalos morreram de exaustão e calor na Cavalgada
do Mar, assim como serão eles os principais autores de muitas críticas a este
projeto. Cabe reforçar que quem mais
protesta contra a crueldade com cavalos não são os veganos, pois os cavalos
fazem parte daqueles animais cujos maus tratos são percebidos pela grande
maioria das pessoas, mesmo aquelas que ainda se utilizam de animais no consumo
alimentar, vestuário ou outros “usos”. Foram estes protetores os autores
indiretos da legislação que hoje impede a circulação de carroças em Porto
Alegre. O alvo preferido dos veganos são os animais invisivelmente consumidos,
invisivelmente sacrificados e que ainda se encontram a margem da lei, como foi
apontado anteriormente. Além disso, cavalgar
não é proibido no Brasil; usar animais em terapias não é proibido e o projeto
se propõe a preservar algo que não é da norma jurídica, mas algo que faz parte
da norma social indo contra a tendência cultural que tem se disseminado a favor
dos animais. Além disso, o projeto impõe a todos os gaúchos uma única tradição
que não é compartilhada em todas as regiões deste vasto Rio Grande. Esta
proposta impõe apenas uma única tradição para todos os nativos, anulando outras
culturas que igualmente merecem espaço e serem igualmente valorizadas nas
tradições locais e na história. As demais tradições também fazem parte do
imaginário de muitos gaúchos. Ampliar
esta ideia do culto às tradições gaúchas que endeusam a prática de montaria
para todos os grupos, não é apenas antropocentrismo, é etnocentrismo,
pois ignoram as demais tradições culturais que construíram o Rio Grande do
Sul, como a cultura indígena que ainda persiste apesar da dominação cultural
dos colonizadores europeus. Esta ideia também exclui a cultura dos
afrodescendentes que também fazem parte da paisagem cultural rio-grandense,
como as demais tradições valorizadas por outros gaúchos, como os italianos, os alemães,
portugueses e outras tradições que compõem a diversidade cultural no Rio Grande
do Sul. Desta maneira, este projeto
viola o princípio da isonomia, pois ignora as outras tradições culturais
valorizadas no Rio Grande do Sul. Os argumentos do PL 312, são tão etnocêntricos
que falam da história do Brasil recente ignorando a existência de um Brasil
povoado por várias tribos indígenas antes de ser invadido pelos europeus quando
chegaram dominando, escravizando, explorando e matando os nativos do local.
Em
termos sociológicos é importante repetir que estamos diante de uma inexorável mudança
cultural e projetos de lei não têm força sobre este movimento que cresce
rapidamente, mesmo no Rio Grande do Sul. Este PL 312 representa o avesso desta
tendência cultural e poderá mesmo significar um impacto negativo, quando
recebida por todos que percebem nestas normas um retrocesso jurídico e social. Aqui
apontamos fatos da realidade social em transformação. O veganismo é fruto desta
nova sociedade que está sendo gestada, mesmo que alguns critiquem e não aceitem
as ideias que começam a ser defendidas. E já está sendo materializada uma nova
ordem jurídica que acompanha estas ideias de respeito a todos os animais e o
Brasil está acompanhando esta mudança como já foi dito anteriormente.
É preciso ainda dizer que os
veganos ainda não têm capital simbólico suficiente para terem espaço na mídia
como foi dito no texto. Ao contrário, quem ocupa este lugar são os
tradicionalistas a ponto de propagarem indiscriminadamente a imagem do gaúcho
amante de montaria como identidade universal para todos os nativos. Os veganos
e mesmo vegetarianos têm sido alvo de preconceito e chacota, mesmo pela grande
mídia, sem direito de resposta, mas mesmo assim esta filosofia tem se
disseminado rapidamente. Os primeiros veganos aqui no RS demonstraram grande coragem ao libertarem-se dos
condicionamentos culturais a que estavam ligados. Esta mudança cultural foi uma grande
“façanha” e também foi gesto de grande “bravura”
ao se oporem aos “modelos” culturais
de nossa terra. Tampouco
têm conseguido vitória fácil em suas reivindicações junto às autoridades como
sustenta o texto, a não ser pelo fato de serem mais articulados e engajados em
suas causas. Também reforçamos que outras tradições merecem igualmente seu
lugar no panteão de tradições que construíram nossa história
Entendemos
que para algumas pessoas estas mudanças e ideias são difíceis de serem aceitas
e para alguns acarretam mesmo prejuízo cultural, se não econômico, mas não há decreto que impeça que a cultura se
transforme, principalmente esta que cada vez mais cria raízes em todos os
lugares. Não há decreto que impeça a
transformação social, ao contrário, a resistência fortalece o movimento,
pois favorece mais ainda a união e a consciência sobre as questões defendidas.
As resistências às mudanças sociais têm efeito contraproducente e produzem
muito mais aceleração na direção das mudanças. A ideologia vegana é uma realidade social e é
ingênuo pensar que algum projeto impediria as pessoas que advogam estas ideias
de se manifestarem e principalmente de aderirem a esta ideologia. Provavelmente
este projeto traga muito mais adeptos à filosofia vegana ou à defesa dos
cavalos que já são defendidos por um grande número de pessoas, mesmo no Rio Grande
do Sul. A tendência é que cada vez mais
pessoas que comungam dessas ideias ocupem vários setores da sociedade e
busquem a materialização destas mudanças nas mais diferentes formas, e setores
da sociedade, seja através de campanhas, de manifestos, de boicotes, nas suas
atividades profissionais e mesmo na política, pois mesmo parlamentares têm sido eleitos somente porque se preocupam com os
animais, assim como outros têm deixado o cenário político por apresentarem
projetos que regularizam ou permitem a exploração dos animais.
A
ideia do cavalo como símbolo da paixão do gaúcho está somente no imaginário de
alguns gaúchos, porque para muitos a ideia do uso do cavalo é vista com muito
menos glamour do que pregam alguns tradicionalistas, e para muitos é vista com
reprovação.
Resta dizer que os ativistas
de defesa dos direitos animais não têm o objetivo expresso de atacar os que
pensam diferente, mas estão unidos para defenderem os animais devido sua vulnerabilidade
e impossibilidade de defenderem-se contra os abusos e mesmo exploração a que
são submetidos.
Eliane Carmanim Lima
Psicóloga,
CRP 07/04567, graduada em psicologia pela Unisinos, graduada em ciências
sociais pela UFRGS, especialista em projetos sociais e culturais pela UFRGS,
com mestrado em Sociologia pela UFRGS. Ativista vegana, vegetariana desde 1987,
vegana há aproximadamente 5 anos, descendente de gaúchos de São Borja onde são
encontrados tradicionalistas que cultuam montaria. Porto Alegre, 1 de outubro de 2013.
Veja abaixo algumas notas sobre alguns pontos do texto.
Trechos do hino riograndense : "sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra" .
A seguir ilustramos este
ideal vegano para complementar estes argumentos com trechos de texto escrito em
outra oportunidade quando ativistas foram veganos foram criticados na
Assembleia Legislativa.
“Não queremos agredir, mas temos uma causa. Estamos aprendendo a
construir um mundo diferente daquele em que temos vivido onde os animais são
vistos como objetos de consumo humano. Também estamos aprendendo a criar
espaços num mundo que ainda não nos reconhece e não somos uma unidade entre
nós, porque ainda não temos um espaço neste universo cultural que
compartilhamos e porque somos todos singulares. Mas dentro de nossa pluralidade
há um consenso: animais foram feitos para serem livres e não para serem
explorados e sacrificados pelos humanos. Como os animais não podem se defender da escravidão e exploração,
muitas vezes cruel, a que têm sido submetidos, nos unimos neste ideal pelos
animais e não contra aqueles que agem e pensam diferente de nós. Apenas
queríamos que a humanidade assumisse sua responsabilidade para com estes seres
mais vulneráveis e para com a natureza degradada e modificasse sua postura de
dominação.
(...) nosso alvo é acabar com o sofrimento de seres indefesos e não criar novas disputas ou celeumas. Fazemos parte deste mundo “não-vegetariano” [ou não-vegano] e sabemos como é a ótica antropocêntrica (especista) na qual o mundo ocidental está calcado. Agora pedimos que vejam a nossa ótica e entendam porque agimos assim. Se não estivesse em jogo a vida de animais indefesos agiríamos diferente. Na realidade não nos importamos com os hábitos dos outros, mas gostaríamos de acabar com o sofrimento dos animais, que são mais indefesos e vulneráveis, por isto nossas ações. Elas não estão relacionadas diretamente ao que as pessoas fazem ou deixam de fazer, mas ao que acontece a animais que são injustamente explorados e maltratados.
Lamentamos que alguns nos vejam como numa disputa de ideais ou de qualquer tipo. Também estamos aprendendo a construir outro espaço onde nossos hábitos possam ser recebidos e respeitados e estamos aprendendo a criar este espaço, o que nem sempre é fácil para todos. Muitas vezes somos agredidos simplesmente por sermos diferentes, num mundo que ainda não aprendeu a nos respeitar e incluir. Somos apenas uma minoria que gostaria de não mais ver seres indefesos sofrerem para satisfazer necessidades humanas. Não queremos desrespeitar ou agredir ninguém; nosso foco é livrar os animais do sofrimento que causamos a eles na busca do bem-estar humano.
(...) Entendam que nossas ações são por causa dos animais e não por causa do que outras pessoas fazem ou pensam ou deixam de fazer, mas isto nos leva a um confronto inevitável. (...) Isto pode gerar um conflito entre os que pensam diferente, mas o ideal de libertar os animais do sofrimento nos leva a prosseguir. Estamos neste conflito sendo agentes de uma grande mudança. Nosso único objetivo é a libertação dos animais da crueldade e da exploração humana.
(Porto Alegre, 23 de agosto de 2008. - Eliane Carmanim
Lima em http://respostadeativista.blogspot.com.br/)
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[1]
O
uso da expressão “(demais) animais”,
ao invés do termo “animais” será
frequente neste texto, uma vez que estamos trabalhando a construção de conceitos
sociais. Com isso, se quer evitar cair no senso comum oriundo de
condicionamentos sociais que aqui são debatidos.
[2]
Segundo Flandrin o consumo de carne de forma regular é bastante recente na
história do ocidente e só se banaliza com os povos germânicos no início da
Idade Média e em alguns países do oriente este consumo nunca chegou a ser a
prática alimentar dominante.
[3]
A Farra do Boi era também considerada uma arraigada tradição cultural que foi
derrubada, por ser contrária à legislação brasileira que proíbe a crueldade com
animais, conforme está na Constituição Federal.
[6]
No dia 20 de setembro de 2013, dia da Revolução Farroupilha, uma nota
publicitária de uma página inteira do Rissul, inclui os vegetarianos no grupo
de consumidores gaúchos num grande marco social.
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