terça-feira, 1 de outubro de 2013

Nem todos os gaúchos gostam de montar cavalos e comer churrasco !


“Nada pode parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.”  BERTOLD BRECHT

O texto a seguir é uma contestação aos argumentos que justificam a criação de um projeto de lei estadual, PL 312/2012 no RS que pretende regular e “legitimar” o uso dos cavalos pelos gaúchos e a prática da Cavalgada do Mar.

Proposta do PL 312/2012

Reconhece o direito de andar a cavalo, tomado individualmente ou em grupo, em qualquer atividade ou evento equestre, como bem de natureza imaterial que integra o patrimônio cultural rio-grandense e estabelece as diretrizes e bases de bem-estar animal para as atividades e eventos equestres e de apoio à equinocultura, e dá outras providências.

Sobre o PL 312/2012, a tradição gaúcha, o veganismo e os cavalos.

Prezados deputados do RS,

        Alguns parlamentares propõem um projeto de lei que trata de “regularizar” ou legitimar o uso de cavalos, ou garantir a montaria, fato este que não é proibido no Brasil. Neste texto apontamos algumas ideias que partem de um enfoque psico-sociológico para apreciação da casa legislativa deste estado.  Os argumentos aqui apresentados não abordam apenas os aspectos jurídicos do projeto, mas são elaborados a partir de conhecimentos do campo da psicologia e da sociologia, melhor habilitados para falar sobre “tradição” de um povo.
Este projeto de lei aborda a teoria de UM psicanalista, Carl Gustav Jung, sugerindo que alguns arquétipos atribuídos à tradição gaúcha seriam compartilhados por todos os gaúchos.  Primeiramente é importante dizer que a abordagem deste psicanalista é apenas uma dentre as várias teorias da psicologia e deve se dizer que as justificativas apresentadas não partem de pesquisas de forma a comprovar que estes arquétipos sejam vivenciados de forma generalizada por um número significativo de gaúchos.
Não nos parece que estes argumentos partam de algum estudo sociológico ou antropológico aprofundado sobre o gaúcho, ou sobre a população do RS, e tampouco fazem jus àquela maioria que protesta contra os usos dos cavalos e é daqui que partem nossos argumentos.
        Primeiramente é preciso abordar um dos pontos da justificativa do PL 312/2012 que trata da questão cultural sobre a tradição gaúcha. Não há dados comprobatórios de que a ideia “consagrada” ou estereotipada do gaúcho seja compartilhada por todos os nativos do RS. O texto de justificativa parte de uma abordagem jurídica sem apresentar bases científicas e muito menos sociológicas para sustentar as considerações tecidas sobre a “tradição gaúcha” e o hábito de cavalgar. Para debatermos sobre hábitos culturais seria necessário apresentar argumentos embasados nas das ciências sociais além de dados comprobatórios destes argumentos.
        Na justificativa do projeto menciona-se uma audiência pública de onde de cita o seguinte:

      As entidades e autoridades da” sociedade civil, ligadas ao universo do cavalo e ao tradicionalismo gaúcho, ouvidas na Audiência Pública opinaram pela criação de uma Lei para reconhecer e assegurar o direito de andar a cavalo e da necessidade de regulação estatal das atividades e eventos eqüestres, assim como a construção de uma política pública de apoio à cadeia produtiva da equinocultura para geração de emprego e renda. (...)
Esses grupos motivados por filosofias ecocentristras do tipo veganismo, defendem ser imoral e antinatural qualquer utilização de animais por humanos. (...) E como todos os grupos ativistas, essas ONGs fazem pressão junto às autoridades, especialmente, o Ministério Público, a fim de proibirem esses eventos no Rio Grande do Sul e acabam ocupando espaço na mídia.
       

        Estes trechos estão destacados acima primeiramente porque o público vegano mencionado no texto, além de não ser o maior interessado, como será desenvolvido a seguir, não só não teve a devida publicidade como não costumam ocupar na mídia este lugar de destaque como será explanado.
        A seguir vamos contextualizar as ideias apresentadas no PL 312/2012 quanto à generalização de que todos os gaúchos compartilham os hábitos enaltecidos pela tradição gaúcha. Isto é um mito. Mesmo que não estivéssemos vivendo uma grande revolução cultural, a ideia de que todos os gaúchos são iguais e como tal propensos a valorizar as “tradições gaúchas” que dão conta de churrascos, do uso de cavalos como montaria, e mesmo do inócuo gosto pelo chimarrão, não passam de mito, consagrado como uma verdade única e absoluta e estendida a todos os nativos. O Rio Grande do Sul é um estado que comporta várias etnias, várias descendências e várias tradições culturais, mesmo que a ideia consagrada e universalizada seja a do “gaúcho”, pelo menos este gaúcho representado com roupas características, ou com a ideia de serem apreciadores de churrascos e montaria. Mas há outro elemento cultural que deve ser observado que é a grande mudança cultural que estamos vivendo de onde o veganismo é uma das consequências.
        Os humanos constroem sua distinção em relação aos demais animais pela peculiaridade em que transmitem seus saberes e técnicas para as futuras gerações. Neste processo engendra-se a cultura que condiciona a todos  coagindo-os socialmente a agirem conforme o grupo social em que estão inseridos. A forma como nos relacionamos com os (demais) animais fazem parte destas regras sociais inconscientemente assimiladas e perpetuadas. O que se deve enfatizar é que todas as condutas humanas são da ordem do social, porque mesmo as práticas relacionadas à subsistência, como a alimentação e a reprodução, na espécie humana assumem características que expressam mais do que a sobrevivência biológica individual ou da espécie. Isto quer dizer que os humanos quando se alimentam, fazem-no também para atenderem a uma demanda cultural, mais do que a uma demanda biológica e mais ainda dizer dos demais hábitos que não representam uma necessidade biológica.  Assim, desde os primeiros sociólogos, como Durkheim, se concluiu que opera sobre nós uma força social coercitiva com o poder de orientar nossas ações de forma inconsciente. Quando se fala “inconsciente” aqui, estamos trabalhando com categorias sociológicas, para dar conta de um imperativo social e não apenas de estruturas psíquicas individuais. Há, desta maneira, uma consciência coletiva compartilhada pelo grupo social cuja reprodução é também garantida através de algumas instituições sociais como a educação e o Estado.  O próprio Direito reflete e é fruto desta moral social. Através deste processo, as condutas censuradas pela sociedade acabam sendo cristalizadas em regras jurídicas. O sociólogo Pierre Bourdieu também reforça esta ideia ao dizer que o processo de assimilação destas regras sociais não é fruto de racionalização ou escolha consciente, mas fazem parte de um habitus, ou seja, de um imperativo social que se expressa conforme o grupo social em que vivemos. Isto não quer dizer que não podemos conscientemente ou racionalmente refletir sobre nossos condicionamentos, mas, via de regra, agimos inconscientemente a partir de condicionamentos culturais, posto que estamos mergulhados no universo cultural que nos ditará normas sociais a serem reproduzidas em detrimento de outras que deverão ser recalcadas e censuradas.
        Com isto queremos dizer que mesmo a ideia de que podemos abater cruelmente os (demais) [1] animais para nos alimentarmos ou mesmo para diversão fazia[2] parte da cultura ou de normas sociais, que não é apenas gaúcha, mas ocidental, que permitiu que esta ideia se naturalizasse em nossa sociedade. No entanto, mesmo este condicionamento cultural generalizado no ocidente, que permitia até o abate cruel, tem sofrido uma grande mudança cultural que tem se refletido em várias condutas sociais e mesmo no Direito. Outras práticas envolvendo os animais também têm se modificado e cada vez mais leis coíbem maus tratos para com os animais. Estes hábitos aqui são mencionados, porque o texto fala em veganismo.
        É preciso lembrar que os paradigmas culturais é que engendram as leis, e à medida que a sociedade se modifica as condutas não mais aceitas socialmente acabam por se tornar ilícitas e mesmo criminalizadas à medida que novos paradigmas culturais são construídos em substituição aos paradigmas antigos. Entendendo por paradigma como “aquilo que os membros de uma comunidade partilham” (Thomas Kuhn, Estrutura das revoluções científicas, 1978).  No Direito podemos ver a cristalização destas mudanças culturais, como é o caso da Lei Maria da Penha, mostrando que hoje nossa sociedade não aceita mais a violência para com as mulheres, mesmo na sua forma mais silenciosa, como na desvalorização e intimidação psicológica. Da mesma forma nossa sociedade não aceita mais o preconceito étnico-racial, ou relacionado à orientação sexual e a legislação acompanha estas mudanças culturais proibindo estas condutas na forma de lei. Tanto mudamos que hoje as relações homoafetivas são aceitas na norma jurídica e cogita-se apreciar estas mudanças na Constituição Federal que ainda fala na união entre homem e mulher somente. Se fôssemos aceitar o argumento da “tradição” como uma justificativa para as nossas ações ainda hoje aceitaríamos o assassinato em nome da honra, as agressões físicas de crianças como “medida educativa” e na área ambiental aceitaríamos o cruel uso de esporas na montaria em rodeios, e tantas outras condutas que hoje julgamos inaceitáveis e que possibilitaram a criação de leis e medidas que proíbem maus tratos e mesmo a crueldade para com os animais.
        Em relação aos (demais) animais são vários os exemplos que mostram a mudança cultural já se materializando nas instituições do Estado. Aqui no Rio Grande do Sul fomos o primeiro estado do Brasil a proibir os circos com animais; também recentemente o extermínio de animais como política de controle de população de animais ou mesmo de zoonoses passou a ser proibido e aqui já se instalou uma secretaria de defesa de direitos animais. Também foi aqui o primeiro caso em que o direito de objeção de consciência foi julgado favorável a um aluno de biologia para eximir-se de participar de aulas em que utilizassem animais, conforme as demandas de sua consciência moral. No Brasil há hoje uma Frente Parlamentar de Defesa dos Direitos Animais e em outros países como a Bolívia e o Equador os animais são sujeitos de direito dando conta de um uma demanda cultural que pede que os animais não sejam mais alvo de crueldade.  O mesmo ocorre na Espanha onde os primatas são considerados sujeitos de direito. Na Suíça amplia-se a noção de dignidade e direitos para além dos humanos e fala-se no direito das “criaturas”. Na Alemanha este princípio de incluir os animais nos sujeitos de direitos ganha a expressão de “dignidade inclusiva” que mostra na própria expressão do termo um novo paradigma cultural emergindo como foi em passado recente a noção de inclusão e de respeito às diferenças. Também não podemos esquecer que a “tradição” milenar das touradas tem perdido espaço e em várias cidades na Espanha as touradas começam a ser proibidas, fato que há uma dezena de anos não seria imaginado. Estes exemplos ilustram como as mudanças culturais têm influenciando tanto as normas sociais como as normas jurídicas, modificando mesmo milenares tradições. Os movimentos sociais que alimentam estas mudanças, por sua vez, não têm fronteiras e contagiam mesmo os gaúchos que também têm protestado até contra o uso, nem sempre “inofensivo”, dos (demais) animais, como o cavalo.
Há muitos outros exemplos tanto na legislação brasileira quanto nas práticas sociais que atestam esta grande mudança cultural, como a Farra do Boi que foi proibida[3], as rinhas de galo igualmente proibidas no Brasil, assim como a caça, e em várias cidades no Brasil os rodeios começam a ser proibidos e há mesmo um projeto de lei federal que pretende acabar com os rodeios em todo o território nacional. Mesmo no Novo Código Penal, em fase de elaboração, há projetos que pedem mudanças na punição do crime de crueldade para com animais para que passe a ter maior rigor punitivo e para que seja considerado de maior potencial ofensivo. Isto significa que nossa sociedade está mais sensível aos maus tratos para com animais. Em Porto Alegre também há uma lei que está sendo implementada proibindo a circulação de carroças na cidade, fatos todos que corroboram com as mudanças culturais, mesmo em tradições mais antigas como touradas e rodeios.
    Estes exemplos atestam que estamos vivendo uma grande REVOLUÇÃO CULTURAL quando emerge a ideia de que os animais merecem respeito e considerações morais. Esta mudança é tão realidade que mesmo tradicionalistas conhecem hoje a expressão “veganismo” que atesta por si só este novo paradigma cultural. Quando um novo termo surge e se populariza é porque o conceito que ele carrega já se materializou na sociedade, e assim hoje se fala em veganismo e especismo, como no passado se falava em feminismo e machismo e respeito às diferenças, introduzindo novas lutas sociais. 
     E como foi visto acima, mesmo no Rio Grande do Sul está surgindo uma nova cultura que rejeita aquela que permitia a crueldade para com os animais. Esta nova compreensão de mundo já apresenta vários exemplos vivenciados nas práticas sociais no Brasil. Apoiar-se no argumento da tradição é resistir a estas mudanças culturais que já se materializam na legislação e na jurisprudência, além de ser uma ideia errônea do mito do gaúcho generalizada a partir do senso comum.
       Falando dos movimentos sociais e suas demandas aqui no Rio Grande do Sul, é sabido que os ativistas de defesa de direitos animais, desde os mais radicais que advogam o fim da exploração animal (veganos), até os que são contrários a algumas práticas que permitem o sofrimento de alguns animais, têm realizado protestos, manifestos e petições para defenderem os animais.  Também não se pode negar que o número de pessoas que se envolvem com estas práticas contrárias à crueldade e mesmo à exploração de animais é crescente no Brasil e no mundo.  
Ainda é importante debater o que seria o tradicionalismo gaúcho em termos de proporção, porque apenas uma pequena proporção de gaúchos participa e apoia as atividades relacionadas a esta tradição. No Rio Grande do Sul, temos uma boa parte da população que cultiva tradições diferentes, como os descendentes de italianos e alemães e para estes a ideia consagrada do gaúcho ligado ao churrasco não os representa. Também há toda uma geração de gaúchos mais urbanos que nunca tiveram o apelo da tradição gaúcha para lhes orientar os hábitos e nestes há um número crescente de pessoas que repudia todos os hábitos que permitem a crueldade e mesmo a exploração animal. Mesmo a suposta tradição do churrasco como alimento preferido do gaúcho não se sustenta, até porque cresce o número de pessoas vegetarianas e veganas mesmo neste estado. Na capital do estado, por exemplo, existe hoje um grande número de estabelecimentos vegetarianos e veganos, a maioria deles existentes há menos de 15 anos, o que corrobora a ideia de que está se criando uma nova cultura que rejeita a crueldade para com animais, mesmo dos animais abatidos para consumo. Estes fatos derrubam a ideia de que os gaúchos comem mais carne do que os demais brasileiros, a partir de um apelo cultural. Na realidade, Porto Alegre é uma das cidades com maior número de restaurantes vegetarianos e veganos em proporção à população. Uma recente pesquisa do Ibope aponta que havia em 2012 no Brasil aproximadamente 15,5 milhões[4] de vegetarianos[5], destes 84.780 eram de Porto Alegre[6]. Este número tende a crescer, pois dá conta desta variável cultural que está em curso, modificando não somente a sociedade e a economia, mas também a legislação e criando novas instituições e políticas públicas no Brasil e mesmo no Rio Grande do Sul. Tanto se dissemina esta nova cultura que mesmo o último presidente do Supremo Tribunal Federal, Ayres Britto[7]·, é vegetariano em vias de se tornar vegano (se é que já não tenha adotado definitivamente a filosofia e prática vegana).
No Brasil não há ainda muitas pesquisas sobre o veganismo, e são incipientes as pesquisas sobre o vegetarianismo, mas já se sabe que o veganismo tem chegado mesmo em lugares mais fechados à cultura em rede, como na China. Na Alemanha, uma pesquisa recente fala em um crescimento de 800% do veganismo, ou seja, é um crescimento exponencial! (Ver links no final.)
        Falando sobre a legislação brasileira, a própria Constituição Brasileira inova ao proibir a crueldade para com os animais e mais tarde esta conduta passa ser crime com a Lei de Crimes ambientais em 1998. Mas não podemos negar que alguns animais são mais “invisíveis” perante a lei do que outros. Assim como algumas minorias a quem os direitos sociais, e mesmo os direitos fundamentais, duramente conquistados, tardam em poderem usufruir destes direitos e medidas protetivas que sustentam sua igualdade de direitos, alguns animais ainda são vítimas da crueldade e estão à margem da lei, apesar da Lei, Constituição Federal, não distinguir os animais por espécies ou “usos”. Partindo da sociologia e de pesquisas nesta área é preciso apontar que isto se dá pelo longo condicionamento cultural a que estamos submetidos, mas mesmo assim a lei já nos dá ferramentas para impedir que toda a crueldade seja proibida e penalizada.  Os animais que ainda padecem da crueldade e que se encontram à margem da legislação que já teria elementos suficientes para impedir que sejam vítimas da crueldade são os “animais de consumo”.  Poderíamos dizer que mesmo os cavalos,  que muito se diz serem respeitados pelos gaúchos, muitas vezes são vítimas de crueldade, de excessos e de abusos, principalmente aqui no Rio Grande do Sul.
    Voltando à questão cultural, vimos até aqui vários elementos que mostram que mesmo que fosse verdade a ideia de que existe uma tradição gaúcha uniforme e cultuada por todos os nativos há muitas evidências de que há outra cultura está se cristalizando na sociedade. Estes novos paradigmas culturais já estão materializados na legislação que não permite a crueldade com os animais e coíbe cada vez mais várias formas de sofrimento de animais. Outro princípio constitucional valorizado na Constituição de 1988 é a ideia de solidariedade e cidadania que destacamos aqui. 
    E ao falar em cidadania cabe abordar o veganismo, que preferimos aqui chamar simplesmente da cultura que se modifica aceleradamente no sentido de buscar mais respeito aos animais, com novos conceitos e valores de respeito aos (demais) animais por conta de seu valor inerente. Criar normas jurídicas que ignoram a força destas mudanças não impedirá que esta nova moral social se dissemine cada vez mais na sociedade. Cada vez mais pessoas têm aderido a filosofias e principalmente a práticas que censuram o uso indiscriminado dos animais. Mesmo que os parlamentares aleguem com argumentos pontuais do ordenamento jurídico brasileiro, e aqui cabe dizer, reforçando aquilo que o direito não permite, como o retrocesso jurídico, cada vez mais pessoas estarão envolvidas com esta nova cultura que repudia a exploração dos animais. Estes ativistas de todas as idades, de todas as profissões, e etnias, que encontram expressão mesmo entre pessoas ilustres como o já mencionado ex-presidente do Supremo tendem a aumentar em número aceleradamente.
        Argumenta-se no PL 312/2012: A filosofia do “veganismo” é um corpo estranho na cultura do povo gaúcho.
Dizer que o veganismo é um corpo estranho na cultura gaúcha, além de não ter a menor sustentação sociológica ou científica é uma negação da realidade inexorável desta mudança cultural que se dá na direção oposta de lei que se pretende construir. O veganismo, antes de ser uma filosofia é uma prática social e mesmo que existam pessoas que se opõem a esta visão de mundo que emerge não conseguirão mudar o sentido deste novo paradigma que se dissemina e alcança mesmo pessoas nos pampas gaúchos. O significado do veganismo e a sua expansão acelerada devem ser entendidos com uma grande revolução cultural, seja pelo que ela propõe, seja pela forma como se alastra. Impor a ideia do gaúcho dos pampas e seus hábitos de montaria a todos os nativos é também uma grande violência simbólica , pois anula todas as demais etnias e tradições que construíram o Rio Grande do Sul e que não se identificam com este mito. É preciso reforçar que a ideia do gaúcho pampiano e esta “paixão” pela montaria não representa muitos nativos e esta lei seria um desrespeito a todos estes que se identificam com outras culturas que também desempenharam papel relevante na história gaúcha, sem falar naqueles, em grande número, que entendem que os animais não foram feitos para montaria e muito menos para “diversão” ou esporte!
        É muito importante destacar que não somente os veganos criticam os usos dos cavalos, como ocorre na Cavalgada do Mar. Na realidade o grande contingente de pessoas, a maioria no Brasil, que defendem estes animais não seguem a filosofia e prática vegana. Estes protetores têm sido presença maciça em manifestos contra a crueldade animal e foram estas pessoas que protestaram quando cavalos morreram de exaustão e calor na Cavalgada do Mar, assim como serão eles os principais autores de muitas críticas a este projeto.  Cabe reforçar que quem mais protesta contra a crueldade com cavalos não são os veganos, pois os cavalos fazem parte daqueles animais cujos maus tratos são percebidos pela grande maioria das pessoas, mesmo aquelas que ainda se utilizam de animais no consumo alimentar, vestuário ou outros “usos”.  Foram estes protetores os autores indiretos da legislação que hoje impede a circulação de carroças em Porto Alegre. O alvo preferido dos veganos são os animais invisivelmente consumidos, invisivelmente sacrificados e que ainda se encontram a margem da lei, como foi apontado anteriormente.  Além disso, cavalgar não é proibido no Brasil; usar animais em terapias não é proibido e o projeto se propõe a preservar algo que não é da norma jurídica, mas algo que faz parte da norma social indo contra a tendência cultural que tem se disseminado a favor dos animais. Além disso, o projeto impõe a todos os gaúchos uma única tradição que não é compartilhada em todas as regiões deste vasto Rio Grande. Esta proposta impõe apenas uma única tradição para todos os nativos, anulando outras culturas que igualmente merecem espaço e serem igualmente valorizadas nas tradições locais e na história. As demais tradições também fazem parte do imaginário de muitos gaúchos. Ampliar esta ideia do culto às tradições gaúchas que endeusam a prática de montaria para todos os grupos, não é apenas antropocentrismo, é etnocentrismo, pois  ignoram as demais tradições culturais que construíram o Rio Grande do Sul, como a cultura indígena que ainda persiste apesar da dominação cultural dos colonizadores europeus. Esta ideia também exclui a cultura dos afrodescendentes que também fazem parte da paisagem cultural rio-grandense, como as demais tradições valorizadas por outros gaúchos, como os italianos, os alemães, portugueses e outras tradições que compõem a diversidade cultural no Rio Grande do Sul.  Desta maneira, este projeto viola o princípio da isonomia, pois ignora as outras tradições culturais valorizadas no Rio Grande do Sul. Os argumentos do PL 312, são tão etnocêntricos que falam da história do Brasil recente ignorando a existência de um Brasil povoado por várias tribos indígenas antes de ser invadido pelos europeus quando chegaram dominando, escravizando, explorando e matando os nativos do local.
        Em termos sociológicos é importante repetir que estamos diante de uma inexorável mudança cultural e projetos de lei não têm força sobre este movimento que cresce rapidamente, mesmo no Rio Grande do Sul. Este PL 312 representa o avesso desta tendência cultural e poderá mesmo significar um impacto negativo, quando recebida por todos que percebem nestas normas um retrocesso jurídico e social. Aqui apontamos fatos da realidade social em transformação. O veganismo é fruto desta nova sociedade que está sendo gestada, mesmo que alguns critiquem e não aceitem as ideias que começam a ser defendidas. E já está sendo materializada uma nova ordem jurídica que acompanha estas ideias de respeito a todos os animais e o Brasil está acompanhando esta mudança como já foi dito anteriormente.
É preciso ainda dizer que os veganos ainda não têm capital simbólico suficiente para terem espaço na mídia como foi dito no texto. Ao contrário, quem ocupa este lugar são os tradicionalistas a ponto de propagarem indiscriminadamente a imagem do gaúcho amante de montaria como identidade universal para todos os nativos. Os veganos e mesmo vegetarianos têm sido alvo de preconceito e chacota, mesmo pela grande mídia, sem direito de resposta, mas mesmo assim esta filosofia tem se disseminado rapidamente. Os primeiros veganos aqui no RS demonstraram grande coragem ao libertarem-se dos condicionamentos culturais a que estavam ligados.  Esta mudança cultural foi uma grande “façanha” e também foi gesto de grande “bravura” ao se oporem aos “modelos” culturais de nossa terra.   Tampouco têm conseguido vitória fácil em suas reivindicações junto às autoridades como sustenta o texto, a não ser pelo fato de serem mais articulados e engajados em suas causas. Também reforçamos que outras tradições merecem igualmente seu lugar no panteão de tradições que construíram nossa história
        Entendemos que para algumas pessoas estas mudanças e ideias são difíceis de serem aceitas e para alguns acarretam mesmo prejuízo cultural, se não econômico, mas não há decreto que impeça que a cultura se transforme, principalmente esta que cada vez mais cria raízes em todos os lugares.  Não há decreto que impeça a transformação social, ao contrário, a resistência fortalece o movimento, pois favorece mais ainda a união e a consciência sobre as questões defendidas.  As resistências às mudanças sociais têm efeito contraproducente e produzem muito mais aceleração na direção das mudanças. A ideologia vegana é uma realidade social e é ingênuo pensar que algum projeto impediria as pessoas que advogam estas ideias de se manifestarem e principalmente de aderirem a esta ideologia. Provavelmente este projeto traga muito mais adeptos à filosofia vegana ou à defesa dos cavalos que já são defendidos por um grande número de pessoas, mesmo no Rio Grande do Sul.  A tendência é que cada vez mais pessoas que comungam dessas ideias ocupem vários setores da sociedade e busquem a materialização destas mudanças nas mais diferentes formas, e setores da sociedade, seja através de campanhas, de manifestos, de boicotes, nas suas atividades profissionais e mesmo na política, pois mesmo parlamentares têm sido eleitos somente porque se preocupam com os animais, assim como outros têm deixado o cenário político por apresentarem projetos que regularizam ou permitem a exploração dos animais.
         A ideia do cavalo como símbolo da paixão do gaúcho está somente no imaginário de alguns gaúchos, porque para muitos a ideia do uso do cavalo é vista com muito menos glamour do que pregam alguns tradicionalistas, e para muitos é vista com reprovação.  
Resta dizer que os ativistas de defesa dos direitos animais não têm o objetivo expresso de atacar os que pensam diferente, mas estão unidos para defenderem os animais devido sua vulnerabilidade e impossibilidade de  defenderem-se contra os abusos e mesmo exploração a que são submetidos.
Eliane Carmanim Lima
            Psicóloga, CRP 07/04567, graduada em psicologia pela Unisinos, graduada em ciências sociais pela UFRGS, especialista em projetos sociais e culturais pela UFRGS, com mestrado em Sociologia pela UFRGS. Ativista vegana, vegetariana desde 1987, vegana há aproximadamente 5 anos, descendente de gaúchos de São Borja onde são encontrados tradicionalistas que cultuam montaria.                                                                                                                                                                               Porto Alegre, 1 de outubro de 2013.

Veja abaixo algumas notas sobre alguns pontos do texto.

Trechos do hino riograndense :  "sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra" .

A seguir ilustramos este ideal vegano para complementar estes argumentos com trechos de texto escrito em outra oportunidade quando ativistas foram veganos foram criticados na Assembleia Legislativa.
“Não queremos agredir, mas temos uma causa. Estamos aprendendo a construir um mundo diferente daquele em que temos vivido onde os animais são vistos como objetos de consumo humano. Também estamos aprendendo a criar espaços num mundo que ainda não nos reconhece e não somos uma unidade entre nós, porque ainda não temos um espaço neste universo cultural que compartilhamos e porque somos todos singulares. Mas dentro de nossa pluralidade há um consenso: animais foram feitos para serem livres e não para serem explorados e sacrificados pelos humanos. Como os animais não podem se defender da escravidão e exploração, muitas vezes cruel, a que têm sido submetidos, nos unimos neste ideal pelos animais e não contra aqueles que agem e pensam diferente de nós. Apenas queríamos que a humanidade assumisse sua responsabilidade para com estes seres mais vulneráveis e para com a natureza degradada e modificasse sua postura de dominação.

(...) nosso alvo é acabar com o sofrimento de seres indefesos e não criar novas disputas ou celeumas. Fazemos parte deste mundo “não-vegetariano” [ou não-vegano] e sabemos como é a ótica antropocêntrica (especista) na qual o mundo ocidental está calcado. Agora pedimos que vejam a nossa ótica e entendam porque agimos assim. Se não estivesse em jogo a vida de animais indefesos agiríamos diferente. Na realidade não nos importamos com os hábitos dos outros, mas gostaríamos de acabar com o sofrimento dos animais, que são mais indefesos e vulneráveis, por isto nossas ações. Elas não estão relacionadas diretamente ao que as pessoas fazem ou deixam de fazer, mas ao que acontece a animais que são injustamente explorados e maltratados.

Lamentamos que alguns nos vejam como numa disputa de ideais ou de qualquer tipo. Também estamos aprendendo a construir outro espaço onde nossos hábitos possam ser recebidos e respeitados e estamos aprendendo a criar este espaço, o que nem sempre é fácil para todos. Muitas vezes somos agredidos simplesmente por sermos diferentes, num mundo que ainda não aprendeu a nos respeitar e incluir. Somos apenas uma minoria que gostaria de não mais ver seres indefesos sofrerem para satisfazer necessidades humanas. Não queremos desrespeitar ou agredir ninguém; nosso foco é livrar os animais do sofrimento que causamos a eles na busca do bem-estar humano.

(...) Entendam que nossas ações são por causa dos animais e não por causa do que outras pessoas fazem ou pensam ou deixam de fazer, mas isto nos leva a um confronto inevitável. (...) Isto pode gerar um conflito entre os que pensam diferente, mas o ideal de libertar os animais do sofrimento nos leva a prosseguir. Estamos neste conflito sendo agentes de uma grande mudança. Nosso único objetivo é a libertação dos animais da crueldade e da exploração humana.  
(Porto Alegre, 23 de agosto de 2008. - Eliane Carmanim Lima em http://respostadeativista.blogspot.com.br/)


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[1] O uso da expressão “(demais) animais”, ao invés do termo “animais” será frequente neste texto, uma vez que estamos trabalhando a construção de conceitos sociais. Com isso, se quer evitar cair no senso comum oriundo de condicionamentos sociais que aqui são debatidos.
[2] Segundo Flandrin o consumo de carne de forma regular é bastante recente na história do ocidente e só se banaliza com os povos germânicos no início da Idade Média e em alguns países do oriente este consumo nunca chegou a ser a prática alimentar dominante.
[3] A Farra do Boi era também considerada uma arraigada tradição cultural que foi derrubada, por ser contrária à legislação brasileira que proíbe a crueldade com animais, conforme está na Constituição Federal.
[6] No dia 20 de setembro de 2013, dia da Revolução Farroupilha, uma nota publicitária de uma página inteira do Rissul, inclui os vegetarianos no grupo de consumidores gaúchos num grande marco social.

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